sexta-feira, dezembro 26, 2008

A gorda

Tinha uma grande bunda e panturrilhas grossas. Panos de seda cobriam-na com diversos coloridos. Azul e preto, mas também rosa e vermelho e talvez amarelo e verde. Seu quadril ia rebolando acompanhando curtos passos limitados pelos sapatos verniz de salto muito altos e finos. Ao lado da vestimenta de seda, nadadeiras. Elas iam balançando calmamente ao ritmo dos passos. Para cima e para baixo, para cima e para baixo... E ela foi virando o corredor escuro.

Tiago de Carvalho

O susto

Estava tudo escuro e só o que se sentia era a água salgada escorrendo pelo rosto. Então chegaram luzes, sorrisos e carinho. Trouxeram com elas ouvidos para ouvir, desenhos e sentimentos sinceros. Café e letras. E novamente tive vontade de escrever porque há coisas boas a se escrever.

Tiago de Carvalho

A praia

Eu sempre lembraria daqueles dias. Em que amávamos tão livremente quanto se pode imaginar. Em que a inveja, a competição e a falta de compreensão não existiam. Nos finais de tarde andávamos a sol baixo e de manhã bem cedo, pelo menos uma vez, vimos o nascer do sol, um pescador e gaivotas. Apenas nós tínhamos a fórmula. E eu gostaria que todas as outras pessoas que amo a aprendessem. Uma, mais do que todas, deveria entender a simplicidade da complexidade das chaves, dos acentos e dos clichês. Sair do quarto escuro e abafado, abrir as janelas... {e trazer consigo suas músicas}.

Tiago de Carvalho

terça-feira, novembro 11, 2008

Coisas soltas que se vai aprendendo a costurar...

Amar... mais que tudo, de todas as formas, sem precisar dizê-lo, mas dizê-lo, com sinceridade, também é amar.

Prender, impedir, aniquilar, apropriar-se do amor. Nada mais grave, nada mais destrutivo, nada mais incompreensível.

Amar a uma só pessoa, não gostar de quem ama quem você ama, está errado e é confuso.

Nada mais fácil que viver, nada mais correto que a verdade, nada mais importante que acreditar, nada mais justo do que brigar pelo que se acredita.

Nada mais enojante que perceber que andaram te fazendo acreditar que não se deve acreditar.

Nada mais normal do que chorar. Nem que sorrir. Aliás, nada mais natural do que sorrir.

Nada mais importante do que amar.

quarta-feira, outubro 29, 2008

Acordou cidadão, dormiu pedra

Acordou um dia e não lembrou de nada. Não sabia seu nome, idade, endereço, onde estava. No chão, deitado, olhou para um lado e viu pedras paver, virou para outro e viu mais pedras paver e uma placa de “Estamos em obras”. Levantou-se e a sua volta girava uma cidade de pessoas que passavam. Tanto acompanhou passos que tonteou e, para não cair, teve que se sentar sob as pedras de concreto. Pôs-se a pensar e, embora o céu escaldasse, teve uma idéia. Mesmo não sabendo, achou que nunca havia tido idéia tão boa. Não sabia o que já sabia, mas sentiu-se excitado com a idéia de apreender o mundo todo novamente. Foi então que tomou a decisão mais importante de que se lembrava – é certo que não se lembra de nada, mas isso não vêm ao caso. Pegaria um ônibus ali ao lado e descobriria tudo.
Contornou a enorme estrutura de onde entravam e saiam ônibus e recuou ao som de um apito. Difícil entender porque tamanha rispidez. E isso ainda não era o mais incompreensível. Para poder ir e vir nesta cidade, explicaram-lhe, era preciso ter R$ 2,05 no bolso. Desapontado, porém, não desanimado resolveu falar com a pessoa que cuidava do pedaço. Com olhar entre espantado e desconfiado o ambulante que vendia algodão doce, cocada, pipoca e amendoim por ali, apontou para um bonito prédio. “Lá, em cima de um morro, é a prefeitura”, informou-o. Chegando, ficou feliz por ver que mais pessoas haviam tido a mesma idéia. Mais de uma centena de cidadãos faziam filas e retiravam senhas, certamente para apresentar reclamações e sugestões de gestão da cidade. Retirou a senha e sentou-se numa das muitas cadeiras do salão. Mas, para seu novo espanto, percebeu que as pessoas cujas senhas eram chamadas dirigiam-se aos balcões e pagavam coisas. Curioso, questionou a senhora sentada ao lado. “A gente vêm aqui pagar impostos”, explicou ela.
Então era para isso que servia a prefeitura? Apenas para recolher impostos? Ao menos para o povo, sim! No setor de informações disseram que o prefeito estava, mas não era tão fácil subir para trocar dois dedinhos de prosa. Atender a população não é a prioridade do chefe do Executivo, “que tem coisas muito mais importantes a fazer”, informou a moça do balcão de informações. Atrás dela, na parede, havia um cartaz onde se lia “Cidade dos príncipes, das flores e das bicicletas”.
Cabisbaixo, mas consolado com a idéia de que em algum lugar por aqui havia príncipes, flores e pessoas felizes andando de bicicleta, foi descendo degraus rumo à rua. Havia um cheiro ruim por ali. Pensativo, seguiu a calçada e deparou-se com o Templo da Justiça Municipal. Pensou que a justiça devia ser bonita, porque de lá só saiam pessoas muito bonitas e bem arrumadas. Depois de um sem tempo de observações, retomou a caminhada. Nem bem deu dez passos, avistou um prédio branco e amarelo; no alto em letras grandes lia-se “Câmara Municipal de Vereadores”. Agora sim, pensou ele, encontrara a Ágora do Povo. Este é o lugar onde os eleitos pela população fazem leis e fiscalizam o que faz o prefeito, explicou-lhe um pequeno rapazinho na saleta dos “vereadores mirins”.
Tomou acento no plenário de onde disseram que podia assistir os trabalhos. Descobriu um espetáculo trágico-cômico da melhor qualidade. Os legisladores brigavam por nomes de ruas, discutiam sexo de anjos, aprovavam doação de dinheiro do povo às empresas privadas, davam tapinhas nas costas, conversavam alto e cortavam o microfone de um homem que tentava dizer que nada daquilo estava certo. Ele quis chamar as meninas que levavam garrafas de café de lá para cá pelos corredores para assistirem o show, mas elas disseram que tinham vergonha de entrar lá.

Ora bolas, vergonha!

Saindo do prédio respirou fundo o ar da noite, e o cheiro podre do grande esgoto em frente invadiu suas narinas e pulmões. Foi andando para o lugar onde tinha acordado. Pensou nas flores que não vira, bicicletas disputando espaço com pessoas em calçadas, indagou-se sobre o príncipe que não veio salvar pessoas que passavam a vida com medo e envergonhadas. Então deitou novamente no mar de concreto e virou outra vez uma pedra paver.

Sobre quando as crianças crescem

Não eram mais crianças. Um dia se encontraram num assalto. Ela a assaltante, ele a vítima. Não que a cidade em que moravam fosse muito grande a ponto de não poderem nunca, sendo dois jovens da mesma idade, ter se encontrado. Eles apenas moravam em planetas diferentes.
Para poder opinar sobre a infância em tempos, diz-se, de pós-modernidade, só no que pude pensar foi neste ato sublime de união entre duas classes sociais tão opostas: o assalto.
Não fossem todos os fatores imagináveis somados ao fato de ela não vestir-se tão bem como ele, estes dois formosos jovens poderiam ter se apaixonado. Havia neles uma coisa em comum: cada qual morava em um planeta.
Na educação dele influenciaram as revistas de educação, as orientadoras psicopedagógicas da escola onde estudou e os programas educativos da TV por assinatura. Na dela, a escola sem biblioteca, o tio revendedor de crack e a pouca atenção da mãe que cuidava de mais cinco filhos pequenos.
Viveram suas infâncias ao mesmo tempo, mas não era de infâncias como a dela que se falava nos comerciais de Nescau. Ele também era de certa forma excluído, na lista dos mais procurados não havia nenhum parente.
Então, ela sussurrou que ele passasse o relógio e todo o dinheiro que levava na carteira. Ele pôde sentir o seu mau cheiro e apenas o medo impediu-o de vomitar. Ela sentiu seu perfume e ele era tão belo quanto os meninos dos seriados TV.
Na escola que ela freqüentou quando criança, as aulas eram improdutivas e o que mais se aprendia era a física relacionada à velocidade e peso das bolinhas de papel. Na hora da merenda, feijão de terceira qualidade. Para ela, a comida era gostosa e, muitas vezes, a melhor parte de ir para a aula. À tarde, pipa nas ladeiras do morro onde morava uma amiga sua ou atirar pedra no esgoto a céu aberto, em frente a sua casa. Algumas vezes, ela nem dormia em casa e sua mãe parecia nem perceber.
Na escola dele, professores especializados ensinavam brincando e as bibliotecas eram projetadas para se mostrarem sedutoras aos olhos do futuro da humanidade. Ir para a aula só era chato porque o fazia perder algumas horas em que poderia estar na internet. As suas navegações na internet eram restringidas por seus pais, que o julgavam jovem demais para ter contato com todo tipo de imagens horrorosas que a web pode oferecer. Para ocupar o restante do dia, ele ainda fazia inglês e natação.
Quando ela colocou os pertences no bolso, falou-lhe ainda que se gritasse ganharia um corte na garganta. Então, abaixou o caco de vidro com que o ameaçava e saiu em disparada para o lado oposto de onde viera.
Ele ficou parado, soluçando em estado de choque. Estava apenas passeando inocentemente pela praia. Nunca antes, alguém no mundo sofrera tamanha injustiça.
Naquela tarde, o pai dele demitiu mais seis empregados com cinco filhos cada.

sábado, agosto 23, 2008

Ausência


Eu deixarei que morra em mim o desejo
de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa
de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa
como a luz e a vida

E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque
em meu ser está tudo terminado.
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados


Vinicius de Moraes

quarta-feira, agosto 20, 2008

O Braço

Sinto-me como Dominic Molise em 1933 foi um ano ruim, de Fante. A única prova de que estou viva é O Braço. Não me deixa nunca esquecer de sua existência. Ele é no momento a única coisa que realmente faz sentido. Seu sentido é doer. Talvez não seja o melhor dos sentidos, mas ao menos ele tem um. É por Ele que minhas noites tornam-se insones e a varanda me observa divagando durante horas. Foi por causa Dele que tanto pensei até decidir por um peixe colorido que me faça companhia e por uma flauta doce. Doce sonho que não vou realizar. Foi segurando Ele noite destas sentada na janela que resolvi reconciliar-me com uma amizade perdida por amor; e me afastar de outra, apenas até que os sentimentos desembaracem o nó em que eu lhes transformei. Uma pena. O Braço saberia o que fazer, decidido como é a doer quando bem lhe convém.

segunda-feira, agosto 04, 2008

Hoje eu não vivo só... em paz
Hoje eu vivo em paz sozinho
Muitos passarão
Outros tantos passarinho
Muitos passarão

Que o teu afeto me afetou é fato
Agora faça me um favor

Um favor... por favor

A razão é como uma equação
De matemática... tira a prática
De sermos... um pouco mais de nós!

Que o teu afeto me afetou é fato
Agora faça me um favor

Um favor... por favor

~ Teatro Mágico ~

domingo, agosto 03, 2008

Non, Je Ne Regrette Rien

Non! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette rien
Ni le bien qu'on m'a fait
Ni le mal tout ça m'est bien égal !

Non! Rien de rien ...
Non! Je ne regrette rien...
C'est payé, balayé, oublié
Je me fous du passé!

Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux!

Balayés les amours
Et tous leurs trémolos
Balayés pour toujours
Je repars à zéro ...

Non! Rien de rien ...
Non! Je ne regrette nen ...
Ni le bien, qu'on m'a fait
Ni le mal, tout ça m'est bien égal!

Non! Rien de rien ...
Non! Je ne regrette rien ...
Car ma vie, car mes joies
Aujourd'hui, ça commence avec toi!

~ Edith Piaf
Composição: Michel Vaucaire / Charles Dumont ~

Estou indo!

Já estou indo!

Cumprir com minhas boas ações de conveniência
Trocar esta blusa larga que deixa meus ombros à mostra de forma indecente
Dizer que não te amo
Pra doer menos.

Já estou indo!

Eu estou indo, não precisa gritar!
Estou indo desligar a TV que fala sozinha
(você não entende que ela não fala sozinha? Faz barulho para que eu me sinta menos só)
Arrumar a cama
Cozinhar alguma coisa que preste.

Já vou, já vou...

Comparecer a uma festa indesejada
Porque no fundo ninguém nunca entende que às vezes é importante sumir
Que às vezes é importante não se achar

Já vou...

Parar de ler estas poesias melodramáticas
Ler uns livros mais cults
Fingir que te ignoro
(a indiferença é o pior dos não sentimentos)

Já estou indo!

Sucumbir à infelicidade do mundo.

Estou indo...

Colocar a culpa toda em você
Que sucumbiu antes de mim.

quarta-feira, julho 23, 2008

BH

Sentada no meio do mundo.
No canto de um bar de rodoviária. Estava lá
encolhida. Tão cercada de pessoas como jamais esteve.
Há muito mais pessoas, medos e maravilhas do que previu
sua imaginação infértil,
pequena e branca.

Já se sentiu tão só, nunca tão branca.
Sente-se mal por sentir-se mal e sua discrição berra aos olhos dos que passam.
Branquidão solitária fazendo anotações
misteriosas na capa de uma revista
espera amedrontada o primeiro expresso
que a leve ao seu reduto cor cor de rosa.

Porque nesta cidade tão grande
cheia de coisas inimagináveis,
não há lugar para branquelos dos pinduricalhos dourados (bem feito pra eles).

19h45 e está indo embora a branquela dos pinduricalhos
agarrada a seu travesseiro
sob quatro milhões de pares de olhos.
Com medo, muda, sozinha.
Todos reparam nela.

Rua de Montarroio

Não sei do que fugíamos.
Dizer que era da vida parecia
demasiado lírico, demasiado verdadeiro
- e a vida raramente aproveita a um poema.

Seja como for, a cidade
predispunha-se, aceitava calmamente
pequenos gestos de ternura,
delírios de morte apenas.
Zé dos Ossos, Trianon - os nomes
que decorei, enquanto fugíamos
da calúnia dos vinte anos.

As tardes no jardim, um pouco lúgubres,
prenunciavam a costumeira subida:
jantávamos os dois por setecentos escudos,
mesmo ao lado da taberna que não tinha mesas.

Saía barato, o amor. Por não sabermos
ainda, que teríamos de pagar a vida inteira
com juros aziagos e versos de demora.

~Manuel de Freitas~

segunda-feira, maio 26, 2008

Amores são como livros

Amores são como livros. Uns maiores, outros menores; alguns profundos, outros mais superficiais. Há aqueles que lemos quando pequenos logo que aprendemos a ler e que nos acompanham por toda a vida; há os que lemos há muito tempo e reencontramos inusitadamente, acompanhados de uma avalanche de lembranças. Algumas pessoas encontram livros perfeitos, livros feitos para elas. Em minha estante cada livro possui seu lugar definido, especial... Às vezes me pego em frente a eles, percorrendo com os olhos seus títulos, lembrando suas histórias, analisando o que cada um me ensinou, me trouxe de novo. Houve os que me obriguei a ler, apenas para não me sentir derrotada; houve os que devorei; os de páginas perfumadas; os simples, porém profundos; há os de cabeceira; os engraçados; os que me fizeram chorar; os retóricos; os demagógicos; os ideológicos; houve os que li ao mesmo tempo; os que duraram apenas uma madrugada; e houve a Bíblia.
Há pessoas que nunca aprenderam a ler, não conheceram outros mundos, outras formas de pensar, não ousaram. Conheço algumas que afirmam não precisar, dizem viver bem, dizem que bastam as orelhas de um livro ou outro. Pode ser que elas sejam felizes a maneira delas. Eu não conseguiria viver assim. Quero ler livros em todos os idiomas, com páginas de todas as cores, de vários autores, tempos, contextos; quero fotos coloridas e em preto e branco, livros de artes, música, política e cinema; quero livros que me façam imaginar as coisas mais inimagináveis e confrontar meus próprios eus, muitas vezes, infinitas vezes. Quero livros, todos os livros do mundo!

A partida

Hoje nós temos que aproveitar a noite, meu amor. Não me deixe partir porque eu não pretendo voltar. Não tão cedo. Quando o dia clarear vou embora para uma cidade bem longe e grande. Não, não pense que não vou voltar por não haver meios; talvez você não entenda, nem lhe peço isso, eu apenas não vou querer voltar. Conhecerei pessoas novas, vou me apaixonar mais uma vez – e mais outra, e mais outra...
A saudade que sentirei de ti e de tudo o que há por aqui provavelmente deixará meu coração apertado às vezes. Não é que eu não vá ter vontade, mas tão cedo eu não vou querer voltar. Não me peça para explicar mais, é um pressentimento e eu não costumo errar.
Então não me deixe ir embora hoje. Vamos a qualquer lugar. Conte-me de você, escute com paciência os meus infinitos e estridentes argumentos. Depois sorria para mim. Faça com que eu tenha vontade de me esconder atrás de você e me diga alguma coisa que me faça olhar-te com olhos esbugalhados de admiração.
Ande bem devagar ao meu lado. Vamos fingir que essa é a velocidade normal. Vamos prolongar cada passo, cada segundo. Porque amanhã eu vou embora. Não poderei levar tudo que tenho. É certo que não são muitas coisas, mas não vou conseguir carregá-las. Só vou levar o que gosto mais, com excessão de você, porque eu não quero que você vá – e nem você vai querer ir. Sei que todos os objetos que amo e que me são tão caros vão acabar cada qual na casa de alguém indiferente – e desimportante. E um dia eu vou descobrir que aquele livro maravilhoso tem então um bode, versão desenho de criança, desenhado na contracapa, cheio de pó no fundo da estante de uma casa qualquer.
Por esse tempo você vai achar que me esqueceu. Mas um dia, depois de muitos anos, eu vou voltar. Alguém vai morrer e eu vou ter que voltar. E então eu vou te fazer lembrar daqueles dias e de como nós conseguíamos andar devagar; vivíamos em um balão colorido, flutuando pelo céu, a mil por hora. Você vai, não sem antes hesitar, perguntar-me por que nunca voltei. Vai perguntar por que eu te deixei envelhecer. E eu vou responder que não sei. O fato é que nunca voltei.
Eu não voltarei, meu amor. Amanhã vou embora para uma cidade bem grande. Que fica muito longe.

domingo, maio 25, 2008

Agora vou ali e não volto. Como já não voltei, outras vezes. Se você vai sentir saudades não sei. Não importa. Novamente seremos eu, meu suco de uva e meu prato de macarrão nos almoços de domingo que nunca se cansam de retornar. Sempre eles, os domingos. Mas tudo bem. Vou ali e não volto. É necessário. Não sei de ti. É necessário pra mim. Tenho uma estante cheia de livros e muitas pessoas que às vezes me amam pra me consolar. Vou ali e não volto. Obrigada e não esqueça de escovar os dentes antes de dormir.

sexta-feira, maio 23, 2008

Os namorados

Eles eram meus amigos nos tempos da faculdade. Ainda estou na faculdade, mas escrevo assim para parecer mais clássico um dia, na posteridade. Envergonho-me daqueles primeiros anos em que eu pensava muitas coisas idiotas. Por isso parei de escrever diários, eles só servem para nos fazer sentir ridículos pelo que pensávamos. Naqueles anos eu não os via com bons olhos. Ela, pelo ciúme que eu tinha - mas essa é uma outra história -; ele, por não conhecer direito, achá-lo tolo, sem conteúdo. Naquele tempo eu tinha coisas mais importantes para ocupar a mente, preocupava-me com o mundo e não percebia nada em volta. Um dia eles começaram a namorar e eu não entendi. Me passou uma impressão de libertação. Ela parecia feliz e ele também pareceu mudar. Gostavam-se de verdade. Acho que pouca gente apostou nesse relacionamento, mas dia após dia, mês após mês, aquele namoro foi durando. E como ela mudou ele... Não sei porque, mas eu sempre ficava imaginando que ele tirou-a da solidão. E quando eu observava os dois, pensava neles num domingo a tarde, juntos preparando um bolo de chocolate. Nessa época já éramos amigos e eu gostava dos dois. Um dia eles terminaram. Não sei porquê, acho que ninguém ou pouca gente sabe. Um dia ele me disse que doía falar disso e eu pensei que não tinha mesmo nada que saber. O curioso é que não havia motivos para eu escrever essa história. Escrevi porque acho que, para eles, a história foi importante. E terminaram, acabou. Então escrevi, para essas lembranças não sumirem nunca.
"Fiquei tão só, aos poucos. Fui afastando essas gentes assim menores, e não ficaram muitas outras. Às vezes, nos fins de semana principalmente, tiro o fone do gancho e escuto, para ver se não foi cortado. Não foi."

~Caio Fernando Abreu~

sexta-feira, maio 16, 2008

cinzento e encarnado
verde e negro
roxo e branco
ocre e rosa
amarelo e bonina
verde e ouro
vermelho e prata
ouro e azul
encarnado e amarelo
verde e ocre
alranjado e verde
azul e amarelo
ocre e ouro
azul e encarnado
cinzento e todas as cores
vermelho e branco
azul sem fim

~maria valéria resende~

terça-feira, maio 13, 2008

Cada vez mais parece que todos os dias são segundas-feiras... E quando se vê falta pouco mais de um mês para se completar vinte anos. Parece ridículo sentir-se velho com apenas duas décadas de chegada ao mundo. É mais uma tristeza por saber que se tem quase vinte anos a menos de vida. Mas não é bem uma tristeza, é mais uma sensação de não ter chão, não ter porto. Só muitas incertezas, tudo tem parecido cada vez mais incerto. Só as perguntas surgem. Quanto mais respostas procuro, tanto mais perguntas acho. E um dia qualquer me contam que morreu um garoto jovem, por um motivo banal. Coitado, morreu como eu, na fase das não respostas. Morreu flutuando, sem chão. Eu nem o conhecia, fiquei triste porque compactuo com a convenção social de que é triste alguém morrer. No mesmo dia se recebe a notícia de que nasceu uma garotinha. Coloriu um pouco o cinza dos meus sentimentos. Não apenas pela convenção de se ficar feliz com o nascimento de alguém. Ontem nasceu um infinito de possibilidades.

sábado, abril 12, 2008

"O coelho branco colocou os óculos e perguntou:
- Com licença de Vossa Majestade, devo começar por onde?
- Comece pelo começo - disse o Rei, com ar grave - e vá até o fim.
Então pare."

(Lewis Carroll)

segunda-feira, março 17, 2008

Elas eram tão diferentes, tão destoantes, tão opostamente vibrantes. Tão... próximas. Odiava-a com todas as forças, e no instante seguinte sentia piedade. Acho que já não existia mais amor. Como uma maldição, não conseguia deixá-la. Mesmo depois de tanto ter-lhe feito sofrer. Mesmo depois de tantas humilhações, tantas lágrimas, tanta felicidade desperdiçada. Continuava perdoando-a. E o ar que passava pelos pulmões ia ficando cada vez mais denso. Às vezes parecia que a angústia virava física, e então a cabeça doia.
Saíra do alcance das mãos, mas ainda haviam marcas. Físicas e emocionais. E essas últimas eram as mais difíceis de superar. Quando pequena pensava "por que comigo?"; quando cresceu já não se perguntava mais, pois possuia a resposta. Resposta essa que pesava, como um fardo, que levaria pra vida.

sexta-feira, março 14, 2008

E aquela dor?
Engoli.
A seco?
Não, com um gole de vinho.

Foto de Sebastião Salgado


Fétido
Podre
Pétrifo
Carnicento

Homem

Desagradável
Atravesse a rua

Humano

Feio
Apenas existe.

segunda-feira, março 10, 2008

Vermelha

E ela, que apenas quer ser (não ela não quer ter)
E ela, que ama à desvairia
Que chora, grita, que perde o controle
Apenas para sentir
Qualquer coisa
E ela, que nasceu do som da solidão
Às vezes acorda e o sol da manhã
Parece-lhe com cores de silêncio
As manhãs tem cheiro de noites passadas
Dos perfumes e das músicas.
Ela, que nunca sabe a quem ama
Que ama a todos
E a ninguém o suficiente
Por vezes ela sente-se o laranja em meio ao cinza
Outras vezes opaca
em meio ao verde, ao azul, ao amarelo
E ao vermelho.
Ela.

quarta-feira, março 05, 2008

Outro dia me questionaram...

1. O que você estava fazendo em 1978 (há 30 anos)?
Eu estava em um planeta pequeno, conversando com um principizinho e sua rosa.

2. E em 1983, há 25?
Desbravava os anéis de saturno.

3. O que você estava fazendo em 1988?
Houve um dia desse ano em que despertei com choros de bebês. Ó céus, como eram altos! Acordaram-me de um sono profundo.

4. E em 1993?
Eu dava infindáveis banhos em bonecas e cortava meias para vesti-las. Meu mundo era então silencioso e, às vezes, ainda conversava com o princepezinho.

5. O que estava fazendo há 10 anos?
Escrevia meu primeiro livro e fugia de casa para ir mais longe que o permitido na minha pequena bicicleta.

6. E há cinco?
Vendendo sapatos, amando platonicamente e chorando nas horas vagas.

Repasso a reflexão para...

O meu querido exagerado

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

"Era uma noite maravilhosa, uma dessas noites que apenas são possíveis quando somos jovens, amigo leitor. O céu estava tão cheio de estrelas, tão luminoso, que quem erguesse os olhos para ele se veria forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e caprichosos? A própria pergunta é pueril, muito pueril... mas oxalá o Senhor, amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!..."

(F. Dostoievski ~ Noites Brancas)

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Peripécias da Solidão II

Siga em frente, agarre uma cestinha e vire à esquerda. Vamos! Você pode fazer isso! Afinal já fez muitas vezes. Mas agora é diferente, é a primeira de muitas outras vezes. E as pessoas em volta não podem imaginar o quão idiotas são os seus pensamentos. Vire à direita agora. Agarre-se na cestinha para não cair. Você precisa de macarrão instantâneo e mais algumas coisas que venham com a quantidade de uma só porção e possam ser preparadas no microondas. Quem sabe umas verdurinhas? Sim, elas estão logo à esquerda e não vão permitir que você fique desnutrida. Uma cenoura, um pimentão. Parece exagero um pimentão inteiro só para você, mas o homem que pesava os vegetais demonstrou curiosidade nas quantidades empacotadas. Agora ao macarrão instantâneo! E no caminho você lembrou que um pouco de café solúvel e leite seriam úteis. Mas a caixa de leite e o pacote de açúcar parecem enormes. Como nunca percebeu? O leite não tem jeito, não vendem em quantidades menores. Acabou optando por um frasquinho de adoçante dietético. “Vai acabar emagrecendo”, pensava quando passou pelos minipãezinhos. Ó, quase se esquecera deles! Meia volta: ainda bem que inventaram a margarina em embalagens pequenas. Agora ao macarrão! No caminho uma promoção de ovos com caixinhas de meia dúzia (Mas que abençoada idéia!). Finalmente o macarrão instantâneo. Cinco pacotes: um para cada dia da semana. “Vai acabar enjoando”, pensava quando surpreendeu o olhar curioso do pai de família, que empurrava um carrinho cheio, sobre a sopa individual express que você descobriu.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Peripécias da Solidão I

Final de tarde. Naquele dia incrivelmente sobrara tempo. Não que não houvesse o que fazer, havia uma vida inteira pra reconstruir... Sobrara tempo porque jogara tudo para o alto. Dane-se! Simplesmente percebera que muitas das coisas com as quais costumava se preocupar não faziam sentido algum.
Naquele final de tarde o sol parecia gritar: “Estou fazendo um final de tarde!” A Luz que entrava pela sacada do estranho apartamento aprofundava ainda mais o silêncio. Ligar a televisão ou o rádio - uma tentação pecaminosa. Aquele era o próprio santuário da solidão.
Que estranho vazio. Que estranha inércia a impedia de acabar com ele. E o celular ali, resplandecendo a ameaça de tocar.

terça-feira, janeiro 15, 2008

O maior vazio que se pode sentir é a falta de um lugar para voltar. Pode parecer divertido no primeiro dia e ainda é divertido no segundo. Mas no terceiro, após um dia cansativo de trabalho, após enfrentar uma chuva gelada na volta para casa (casa...?), vem o vazio.De repente você se dá conta de que não vai tomar um banho no chuveiro com o qual se acostumou, não vai abrir o armário e pegar o pijama mais confortável, não vai abrir a geladeira com desenvoltura, pegar o que quiser e fechá-la com o pé. Você não vai mais ligar a tv no canal que quiser e passar o resto da noite no MSN conversando com um colega qualquer.
Você vai se pegar sentado no pé de uma cama estranha, em um quarto estranho da casa de uma pessoa estranha. Vai estar cansado, mas a sua vergonha de se deitar vai ser maior. Nesse momento você vai lembrar de como os livros ficaram legais arrumados da última forma que você os deixou, vai lembrar do violão do qual, embora estivesse a tempos empoeirado e esquecido em cima do armário, você gostava para valer. Vai doer mesmo no momento em que você se der conta de que nunca mais vai deitar na sua antiga cama. E sabe o que é ainda pior? O mundo. Ele não vai parar porque você está com cara de choro. E essa é a forma mais simples e batida de aprender que o mundo é cruel.
Mas ao poucos, a sua vida, como um muro de tijolos que desmoronou, vai sendo reconstruída. Logo você se acostuma com um novo chuveiro, arruma uma nova forma de almoçar, deixa o seu cheiro em um novo cobertor, encontra novas pessoas para amar, perdoa e é perdoado pelas antigas pessoas que você amava.

sábado, janeiro 05, 2008





Créditos da foto para Ariane...

casa de noca

“O couro comeu na casa de noca, nego
Não teve jeito...”


- Dança comigo?
- Não sei. Pode ser... Eu te conheço?
- Ainda não...
- Tá bom.

“tem nego pensando que a casa de noca é farra, é fofoca, é canjerê...”

- Seu nome?
- Raul.

“ah, nego!
Mexeu com fogo, deu uma de bobo, e bobo não pode beber
da água que jorra da fonte...”


- E o seu?
- Maria...

“Não fale, não conte,
pois ele não vai entender...”


- Quê cê faz?
- Poemas.

“E nessa vida tem que ter molejo,
jogo de corpo, uma boa visão...”


- E você?
- Nada não...

“Tem que ser maleável,
olha lá meu irmão...”


- Tem namorado?
- Inda não...


(Casa de noca - Maria Rita)

sexta-feira, janeiro 04, 2008

A morte da autora

– Ela está morrendo.
– Não está não. Pare de mentir.
– Está sim. Eu sou personagem dela. E a muito mais tempo do que você. Ela está morrendo, não consegue mais ter idéias. Nada mais soa original.
– Pare. Você só pode estar enganado. Esse diálogo, por exemplo, é a prova de que ela ainda está muito viva. Não me parece que ela esteja morrendo.
– Mas ela está. Esse diálogo também é uma cópia. Ela copiou a idéia de um personagem que anunciava a morte de seu autor do site Cronópios.
– Como você pode saber de tudo isso?
– Já falei: Sou personagem dela. Vivo dentro da cabeça dela. Sei de tudo que se passa por lá.
– Então por que eu também não sei? Também moro lá.
– Talvez ela goste mais de mim. Imaginou a mim primeiro.
...
– Droga! Odeio ela!
– Não diga isso. Você é ela e ela é você.
– Então talvez ela se odeie.
– É mais provável que esteja com pena de si mesma por não conseguir mais escrever coisas bacanas.
– Eu também sinto pena dela.
– Isso é conveniente.
...
– Será que ela ainda tem jeito?
– Talvez. Parece que ela tem lido muito, isso deve ajudar.
– E se ela desistir? Se resolver estudar corte e costura?
– Então nós viraremos bonitos vestidos.
– É... Não parece mal.