quinta-feira, janeiro 17, 2008

Peripécias da Solidão II

Siga em frente, agarre uma cestinha e vire à esquerda. Vamos! Você pode fazer isso! Afinal já fez muitas vezes. Mas agora é diferente, é a primeira de muitas outras vezes. E as pessoas em volta não podem imaginar o quão idiotas são os seus pensamentos. Vire à direita agora. Agarre-se na cestinha para não cair. Você precisa de macarrão instantâneo e mais algumas coisas que venham com a quantidade de uma só porção e possam ser preparadas no microondas. Quem sabe umas verdurinhas? Sim, elas estão logo à esquerda e não vão permitir que você fique desnutrida. Uma cenoura, um pimentão. Parece exagero um pimentão inteiro só para você, mas o homem que pesava os vegetais demonstrou curiosidade nas quantidades empacotadas. Agora ao macarrão instantâneo! E no caminho você lembrou que um pouco de café solúvel e leite seriam úteis. Mas a caixa de leite e o pacote de açúcar parecem enormes. Como nunca percebeu? O leite não tem jeito, não vendem em quantidades menores. Acabou optando por um frasquinho de adoçante dietético. “Vai acabar emagrecendo”, pensava quando passou pelos minipãezinhos. Ó, quase se esquecera deles! Meia volta: ainda bem que inventaram a margarina em embalagens pequenas. Agora ao macarrão! No caminho uma promoção de ovos com caixinhas de meia dúzia (Mas que abençoada idéia!). Finalmente o macarrão instantâneo. Cinco pacotes: um para cada dia da semana. “Vai acabar enjoando”, pensava quando surpreendeu o olhar curioso do pai de família, que empurrava um carrinho cheio, sobre a sopa individual express que você descobriu.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Peripécias da Solidão I

Final de tarde. Naquele dia incrivelmente sobrara tempo. Não que não houvesse o que fazer, havia uma vida inteira pra reconstruir... Sobrara tempo porque jogara tudo para o alto. Dane-se! Simplesmente percebera que muitas das coisas com as quais costumava se preocupar não faziam sentido algum.
Naquele final de tarde o sol parecia gritar: “Estou fazendo um final de tarde!” A Luz que entrava pela sacada do estranho apartamento aprofundava ainda mais o silêncio. Ligar a televisão ou o rádio - uma tentação pecaminosa. Aquele era o próprio santuário da solidão.
Que estranho vazio. Que estranha inércia a impedia de acabar com ele. E o celular ali, resplandecendo a ameaça de tocar.

terça-feira, janeiro 15, 2008

O maior vazio que se pode sentir é a falta de um lugar para voltar. Pode parecer divertido no primeiro dia e ainda é divertido no segundo. Mas no terceiro, após um dia cansativo de trabalho, após enfrentar uma chuva gelada na volta para casa (casa...?), vem o vazio.De repente você se dá conta de que não vai tomar um banho no chuveiro com o qual se acostumou, não vai abrir o armário e pegar o pijama mais confortável, não vai abrir a geladeira com desenvoltura, pegar o que quiser e fechá-la com o pé. Você não vai mais ligar a tv no canal que quiser e passar o resto da noite no MSN conversando com um colega qualquer.
Você vai se pegar sentado no pé de uma cama estranha, em um quarto estranho da casa de uma pessoa estranha. Vai estar cansado, mas a sua vergonha de se deitar vai ser maior. Nesse momento você vai lembrar de como os livros ficaram legais arrumados da última forma que você os deixou, vai lembrar do violão do qual, embora estivesse a tempos empoeirado e esquecido em cima do armário, você gostava para valer. Vai doer mesmo no momento em que você se der conta de que nunca mais vai deitar na sua antiga cama. E sabe o que é ainda pior? O mundo. Ele não vai parar porque você está com cara de choro. E essa é a forma mais simples e batida de aprender que o mundo é cruel.
Mas ao poucos, a sua vida, como um muro de tijolos que desmoronou, vai sendo reconstruída. Logo você se acostuma com um novo chuveiro, arruma uma nova forma de almoçar, deixa o seu cheiro em um novo cobertor, encontra novas pessoas para amar, perdoa e é perdoado pelas antigas pessoas que você amava.

sábado, janeiro 05, 2008





Créditos da foto para Ariane...

casa de noca

“O couro comeu na casa de noca, nego
Não teve jeito...”


- Dança comigo?
- Não sei. Pode ser... Eu te conheço?
- Ainda não...
- Tá bom.

“tem nego pensando que a casa de noca é farra, é fofoca, é canjerê...”

- Seu nome?
- Raul.

“ah, nego!
Mexeu com fogo, deu uma de bobo, e bobo não pode beber
da água que jorra da fonte...”


- E o seu?
- Maria...

“Não fale, não conte,
pois ele não vai entender...”


- Quê cê faz?
- Poemas.

“E nessa vida tem que ter molejo,
jogo de corpo, uma boa visão...”


- E você?
- Nada não...

“Tem que ser maleável,
olha lá meu irmão...”


- Tem namorado?
- Inda não...


(Casa de noca - Maria Rita)

sexta-feira, janeiro 04, 2008

A morte da autora

– Ela está morrendo.
– Não está não. Pare de mentir.
– Está sim. Eu sou personagem dela. E a muito mais tempo do que você. Ela está morrendo, não consegue mais ter idéias. Nada mais soa original.
– Pare. Você só pode estar enganado. Esse diálogo, por exemplo, é a prova de que ela ainda está muito viva. Não me parece que ela esteja morrendo.
– Mas ela está. Esse diálogo também é uma cópia. Ela copiou a idéia de um personagem que anunciava a morte de seu autor do site Cronópios.
– Como você pode saber de tudo isso?
– Já falei: Sou personagem dela. Vivo dentro da cabeça dela. Sei de tudo que se passa por lá.
– Então por que eu também não sei? Também moro lá.
– Talvez ela goste mais de mim. Imaginou a mim primeiro.
...
– Droga! Odeio ela!
– Não diga isso. Você é ela e ela é você.
– Então talvez ela se odeie.
– É mais provável que esteja com pena de si mesma por não conseguir mais escrever coisas bacanas.
– Eu também sinto pena dela.
– Isso é conveniente.
...
– Será que ela ainda tem jeito?
– Talvez. Parece que ela tem lido muito, isso deve ajudar.
– E se ela desistir? Se resolver estudar corte e costura?
– Então nós viraremos bonitos vestidos.
– É... Não parece mal.